Síndrome de Carmilla: A Vampira, a Femme Fatale e a Obsessão Feminina
Como o audiovisual romantiza esse arquétipo e como ele molda a forma como mulheres vivem, competem e se devoram.
Hoje vamos falar sobre a Síndrome de Carmilla. Esse termo não é clínico, ele sequer existe oficialmente, mas seu impacto na literatura, no audiovisual e nas relações femininas é inegável. Inspirada em Carmilla Karnstein, uma das primeiras vampiras da literatura gótica, essa síndrome reflete um padrão de obsessão, desejo e dominação feminina que se tornou uma narrativa recorrente.
Antes de Drácula, antes de Nosferatu, foi Carmilla quem estabeleceu o vampiro sedutor, envolto em mistério e perigo, capaz de sugar sua vítima aos poucos—não apenas fisicamente, mas emocionalmente. Mas por que essa história se tornou tão poderosa? Por que, ainda hoje, homens adoram brincar com essa narrativa?
Minhas Impressões sobre Carmilla
Antes de mergulharmos no conceito da Síndrome de Carmilla, quero compartilhar minha experiência lendo o livro. Não sei exatamente como chamar isso—review? Análise? Reflexão? Talvez um pouco de tudo.
A primeira vez que ouvi falar sobre Carmilla foi no Tumblr, entre fanarts e fanfics. Parecia uma história icônica, um clássico essencial para qualquer mulher sáfica interessada em literatura gótica. Naturalmente, decidi ler, movida pelo entusiasmo de finalmente conhecer um romance gótico protagonizado por mulheres. Afinal, Carmilla é frequentemente referenciada como um ícone da literatura sáfica.
No entanto, logo percebi que minha expectativa estava equivocada. Sim, existe um subtexto homoerótico forte, mas não se trata de um romance. É uma história de desejo, sim, mas um desejo sombrio, predatório, sufocante. O que, sinceramente, para mim, não é ruim quando se trata de ficção. Mas o problema não é a escuridão da narrativa, e sim o que ela representa: mais uma tentativa de demonizar a sexualidade feminina.
O livro me deixou inquieta. A sensualidade de Carmilla e sua devoção obsessiva a Laura são envolventes, mas a forma como a narrativa conduz essa relação deixa claro que tudo aquilo é visto como algo corrupto, perigoso, algo que precisa ser eliminado. Não há espaço para um final feliz. O desejo feminino é punido, e a presença dos homens no desfecho serve para reafirmar essa condenação. Carmilla não tem redenção; seu destino já está selado antes mesmo da história começar.
Não há sexo explícito no livro, mas ele é carregado de sensualidade. A tensão sexual entre Laura e Carmilla permeia cada interação, tornando a narrativa ainda mais intensa. A história se sustenta em uma mistura de desejo e medo, um jogo de poder onde Laura é, ao mesmo tempo, fascinada e aterrorizada pela vampira. Essa ambivalência é o que torna Carmilla tão impactante. A protagonista não consegue resistir ao toque da vampira, mas também sente que está sendo devorada por ele. Não é sobre amor—é sobre controle.
E essa é a essência da Síndrome de Carmilla: uma relação onde a obsessão se disfarça de carinho, onde a posse se disfarça de proteção, onde a admiração se transforma em rivalidade silenciosa.
Ao terminar a leitura, senti que Carmilla poderia ter sido mais. Eu queria mais dela, mais de sua presença, mais de sua história. Queria uma narrativa que não a tratasse apenas como um monstro, mas como uma personagem tridimensional, com profundidade e intenções mais complexas. Ela surge como uma sombra sedutora e destruidora, mas sua própria história parece escapar de suas mãos, sendo conduzida até o fim por figuras masculinas que se impõem sobre o destino dessas duas mulheres.
E é justamente por isso que Carmilla transcendeu o que Sheridan Le Fanu escreveu. Ela foi transformada por quem a leu, ressignificada por quem encontrou em sua história algo muito maior do que um conto de terror vitoriano.
Agora, vamos ao que realmente interessa: o que essa história representa? O que é a Síndrome de Carmilla e por que esse arquétipo continua tão presente?
Carmilla Karnstein: A Primeira Femme Fatale da Literatura Gótica
Carmilla é, antes de tudo, uma femme fatale. O próprio conceito de "mulher fatal" vem de figuras como ela: misteriosa, sedutora, perigosa e irresistível. Na definição clássica, a femme fatale não conquista apenas pelo desejo, mas pelo controle. Ela enfeitiça sua vítima, faz com que ela perca o senso de realidade e, no final, a destrói. A femme fatale é uma criação masculina. Sua existência, desde os tempos bíblicos até Hollywood, foi construída como um alerta: mulheres que fogem ao seu papel tradicional acabam sozinhas, mortas ou destruídas. No film noir dos anos 1940 e 1950, ela era a mulher fatal que arrastava homens à perdição e era punida por isso. Nos mitos antigos, ela era Lilith, Eva, Salomé.
Carmilla segue essa mesma lógica. Ela é um perigo porque seu desejo é incontrolável. Diferente de Drácula, cuja ameaça é óbvia, Carmilla seduz antes de atacar. Sua arma não é a violência bruta, mas o encantamento, a manipulação, a promessa de uma conexão impossível de ser desfeita.
Mas Laura realmente vê Carmilla como ela é? Ou o que sabemos sobre Carmilla é apenas o olhar de uma vítima fascinada e vulnerável?
Na história, Laura—jovem, inocente, ingênua—torna-se alvo da obsessão de Carmilla. A vampira se aproxima, seduz, domina. Seus toques são intensos, seus olhares são hipnóticos. O desejo que Carmilla tem por Laura é, ao mesmo tempo, devorador e possessivo.
“Às vezes, depois de uma hora de apatia, a minha estranha e bela companheira tomava a minha mão e segurava-a com uma carinhosa pressão, renovada seguidamente, corando suavemente, encarando-me com olhos langorosos e ardentes, respirando tão rápido que seu vestido erguia-se e abaixava-se com a tumultuada respiração.”
“Foi como o ardor de um amante, que me embaraçou. Foi odioso e ainda assim, dominador. Com os olhos sedutores, ela atraía-me para ela e seus lábios ardentes passeavam ao longo de meu rosto em beijos. Ela sussurrava, quase em soluços: ‘Você é minha, você será minha, eu e você seremos uma para sempre’.”
Carmilla não apenas quer Laura—ela quer possuí-la, absorvê-la, transformá-la em uma extensão de si mesma. Seu amor não é altruísta, é egoísta.
“Você me achará cruel e egoísta, embora o amor seja sempre egoísta. Quanto mais ardente ele é, mais se torna. Você não faz ideia do ciúme que sinto. Você precisa vir comigo e me amar, até a morte. Ou então me odiar, mas venha comigo. E me odeie, na morte e além. Indiferença é uma palavra que minha natureza desconhece.”
Não é isso que aprendemos desde cedo sobre o amor? Que ele deve consumir, dominar, transformar? Mas e quando esse amor se torna sufocante? Quando a fronteira entre devoção e posse desaparece?
Carmilla, a vampira, e a femme fatale que veio depois dela, são reflexos de uma ideia que a sociedade teme: o desejo feminino sem amarras. O mito da mulher sedutora e destrutiva é um produto da sociedade. Desde Carmilla, a femme fatale tem sido usada para demonizar mulheres que fogem do padrão esperado. A sedução e a inteligência feminina, em vez de serem celebradas, são vistas como perigosas.
Na cultura pop, a Síndrome de Carmilla reaparece disfarçada em narrativas de rivalidade feminina. Mas será que sempre foi só rivalidade? Ou havia ali um desejo reprimido que ninguém ousava nomear?
Se a femme fatale sempre foi uma criação masculina, o que acontece quando as mulheres começam a reescrevê-la?
Nos últimos anos, Carmilla e tantas outras personagens como ela passaram por um processo de ressignificação. O que antes era um aviso sobre mulheres perigosas se tornou um símbolo de mulheres que não querem ser domadas. Mas essa reapropriação é perigosa. Não porque a femme fatale em si seja um problema, mas porque romantizar sua existência pode nos fazer ignorar que ela sempre foi uma resposta a uma opressão maior.
Então, o que seria a Síndrome de Carmilla?
A Síndrome de Carmilla descreve relações femininas intensas em que os limites entre amor, obsessão e rivalidade se dissolvem. Em um mundo que ensina mulheres a competirem entre si, a dinâmica entre Carmilla e Laura se tornou um arquétipo: a mulher que te idolatra, mas também quer ser você (ou possuir você). Essas relações ultrapassam os limites da amizade e mergulham em um território nebuloso entre admiração, inveja e dependência emocional. Alguns sinais clássicos incluem:
A idolatria inicial – No começo, tudo é encantamento. Você é a escolhida, o centro do universo dela. Ela quer saber tudo sobre você, elogia cada detalhe seu, quer estar sempre por perto.
A simbiose – Vocês se fundem em uma identidade única. Se vestem parecido, falam igual, compartilham segredos que mais ninguém conhece.
O ciúme – Qualquer interferência externa é uma ameaça. Ela quer controlar suas outras amizades, suas escolhas, seus sentimentos.
A rivalidade oculta – No fundo, ela quer ser você. Mas, como isso é impossível, começa a te sabotar. Pequenos comentários ácidos, pequenas traições calculadas.
A destruição – Eventualmente, a relação implode. E, como em qualquer tragédia gótica, uma das partes sai emocionalmente destruída. Ou ambas.
Entre a Inveja e o Desejo:
O que é essa obsessão feminina que beira o horror? O que nos faz amar e odiar ao mesmo tempo?
Freud falaria de identificação narcísica. Lacan diria que o desejo sempre é o desejo do outro. A verdade é que muitas relações entre mulheres flutuam entre inveja e fascínio porque fomos ensinadas a competir. Desde crianças, somos bombardeadas com a ideia de que existe apenas um lugar de destaque para uma mulher—e ele precisa ser conquistado.
É por isso que Carmilla não é apenas uma predadora. Ela é também um espelho. Laura a vê, e em algum nível quer ser como ela. Carmilla, por outro lado, quer consumir Laura, porque quer possuir aquilo que jamais poderá ser.
Carrie e Natasha: Um Exemplo Clássico
Vamos falar um pouco sobre nossa querida(ou desquerida) Carrie Bradshaw. Ela foi uma Carmilla na vida de Natasha. Ela perseguiu Natasha, invadiu a casa dela, destruiu seu casamento, a deixou sem um dente—e depois ainda escreveu uma coluna sobre como tudo isso foi um aprendizado pessoal para ela.
O que Carrie queria, afinal? O Mr.Big? Ou ser a própria Natasha?
Hailey e Selena: Um Espelho Partido
O Audiovisual e a Música: A Tradução da Obsessão
Na cultura pop, a Síndrome de Carmilla reaparece disfarçada em narrativas de rivalidade feminina. E repetindo novamente, será que sempre foi só rivalidade? ou sempre teve ali um desejo reprimido que todos sabem o que é, mas se recusam a nomear? O cinema e as séries adoram explorar esse tipo de relação, porque a rivalidade feminina vende. Mas muitas dessas histórias não são apenas sobre ódio ou inveja—elas são sobre desejo reprimido.
Mulholland Drive (2001) – A relação entre Betty e Rita começa com fascínio e devoção, mas logo se transforma em uma obsessão sufocante. Betty deseja Rita de maneira intensa e incontrolável, projetando nela uma idealização que acaba desmoronando. O filme mergulha em um surrealismo febril, onde desejo e identidade se confundem, culminando em um desfecho trágico de loucura e destruição.
Cisne Negro (2010) – Nina vê Lily como uma ameaça e, ao mesmo tempo, como uma libertação de sua repressão. Sua obsessão por Lily se mistura ao próprio medo de perder o controle, refletindo seu conflito interno entre pureza e transgressão. O desejo reprimido, a paranoia e a dualidade entre rivalidade e atração fazem com que Nina perca a noção da realidade, levando-a a um colapso psicológico.
Garotas Malvadas (2004) – Regina George não quer apenas manipular Cady, ela quer que Cady seja sua. No início, há uma espécie de iniciação: Regina veste, molda e dita as regras para Cady. Mas, quando percebe que está perdendo o controle sobre ela, Regina reage com agressividade, alternando entre tentativas de humilhação e um desejo velado de reafirmar seu domínio.
Jennifer’s Body (2009) – Jennifer e Needy compartilham um relacionamento que ultrapassa os limites da amizade. Jennifer se alimenta literalmente dos homens, mas sua relação mais intensa e destrutiva é com Needy. A tensão entre as duas oscila entre uma devoção quase romântica e uma dinâmica de posse, ciúme e controle. No fundo, Jennifer precisa de Needy tanto quanto Needy precisa de Jennifer, e essa interdependência as leva a um caminho irreversível de tragédia.
Na música, o padrão é o mesmo. A música pop moderna adora explorar a rivalidade feminina. Mas, muitas vezes, essa rivalidade parece ir além da disputa por um homem – ela se torna uma fixação intensa na outra mulher, uma tentativa de compreendê-la, superá-la ou até mesmo ser ela. Será que essas músicas falam realmente sobre um namorado? Ou será que sempre foi sobre a ex dele?
Obsessed – Olivia Rodrigo
"I know her star sign, I know her blood type / I've seen every movie she's been in, and, oh, God, she's beautiful"
Não é apenas um ciúme comum. É quase uma pesquisa minuciosa, uma necessidade de absorver cada detalhe dessa mulher. O namorado se torna secundário – o verdadeiro foco é a figura feminina que representa tudo que ela teme e deseja ao mesmo tempo. "I'm staring at her like I wanna get hurt" Esse desejo de sentir dor, de se comparar obsessivamente, de absorver a outra até que não reste mais nada de si mesma – isso não soa como algo que já vimos antes? Laura olhando para Carmilla, fascinada, mesmo sabendo que sua presença a consumiria?
E até mesmo no álbum Sour, Olivia Rodrigo não parece tão preocupada com o homem que a deixou. O foco de sua dor e frustração está na outra mulher, na atual dele, aquela que parece inatingível, perfeita, a quem ela nunca conseguirá superar.
Pacify Her – Melanie Martinez
"Someone told me, stay away from things that aren't yours / But was he yours if he wanted me so bad?"
Melanie Martinez expressa essa tensão de maneira ainda mais agressiva em "Pacify Her". A rivalidade feminina aqui não é apenas uma questão de insegurança – é uma batalha pelo controle, uma negação absoluta da existência da outra mulher. A presença da rival é insuportável. Ela precisa ser silenciada, erradicada. O que começa como um desejo de exclusividade se transforma em um desejo de destruição.
"Pacify her, she's getting on my nerves / You don't love her, stop lying with those words."
Aqui, mais uma vez, vemos uma Carmilla cantando para sua Laura. Não há espaço para mais ninguém. Não há alternativa além de ceder ao jogo de dominação.
Girl, So Confusing – Charli XCX e Lorde
"Yeah, I don't know if you like me / Sometimes I think you might hate me / Sometimes I think I might hate you / Maybe you just wanna be me."
Diferente das outras músicas, "Girl, So Confusing" aborda a relação feminina sem precisar de um homem como mediador. Ela fala sobre o paradoxo de ser mulher e tentar entender outras mulheres, sobre como amizade, admiração e inveja podem se misturar de maneira desconfortável. Essa música traduz a ambiguidade das relações femininas – o desejo de se conectar, de se identificar, mas também o medo de ser substituída, de ser superada.
"People say we're alike / They say we’ve got the same hair / One day we might make some music / The internet would go crazy."
A rivalidade e a conexão andam de mãos dadas. Elas se observam, se estudam, se comparam. Elas querem se destruir ou querem ser uma só?
Até Que Ponto Essas Músicas São Sobre um Homem?
Quando analisamos essas letras dentro do contexto da Síndrome de Carmilla, começamos a nos perguntar: o homem é realmente o centro da questão? Ou ele é apenas um pretexto para que duas mulheres se fixem obsessivamente uma na outra? Talvez seja a mesma pergunta que poderíamos fazer a Laura e Carmilla. Será que Laura queria tanto se livrar de Carmilla assim? Ou parte dela desejava ser possuída? A cultura pop constantemente recicla a rivalidade feminina porque ela vende, porque fomos condicionadas a competir. Mas quando essa rivalidade se torna algo a mais – algo que beira o desejo, a obsessão e o medo – ela se transforma no fenômeno que chamamos de Síndrome de Carmilla.
Conclusão: Entre o Desejo e o Perigo
No final da história de Carmilla, os homens fazem o que sempre fazem quando veem duas mulheres envolvidas em algo que não entendem: eles matam uma delas. Mas Laura nunca mais será a mesma. Ela sobrevive, mas sua inocência morre ali. Na vida real, a Síndrome de Carmilla pode deixar marcas igualmente permanentes. Porque não há como passar por uma relação dessas e sair ilesa. Mas há como sair.
Se você já teve uma Carmilla na sua vida, você sabe. Se você já foi uma Carmilla, você sabe ainda mais. Eu particularmente já fui ambas.
Mas a questão é: como quebrar esse ciclo antes que ele te destrua?
que construção maravilhosa! adoro carmilla, é um livro maravilhoso, um dos meus favoritos junto com interview with a vampire (no contexto vampiresco), mas não dá pra negar que ele é muito complexo de ler e compreender. você fez analogias incríveis com músicas SUPER atuais, fernanda, escrita magnífica!
Mds esse texto é incrível toda vez que lia dava vontade de ler mais, amo assuntos assim, nunca tinha percebido isso digo quando eu li tbm fiquei com vontade de mais como ser eles não aproveitaram odiei o fato da Carmilla morre (quando peguei esse livro pra ler jurava que era uma protagonista boazinha 🆘) é tbm o fato de você mostrar uma ideia diferente do livro fazendo ele ter mais sentido pra mim só melhora esse texto(pq no ao meu ver eu não tinha entendido a ideia do livro achei fraco Sla)