Pink goes well with green
Entre Glinda e Elphaba: performance, privilégio e o custo de parecer funcional.
Como de costume, eu transformei mais uma obsessão em estética e autoanálise. E com Wicked (2024), não seria diferente. O trailer da Part Two, Wicked: For Good, saiu recentemente e me emocionou profundamente — como quase tudo que me atravessa com força estética e emocional.
Wicked é, sem dúvidas, um dos meus musicais favoritos da vida. Aliás, sou completamente obcecada por musicais. Amo decifrar personagens, mergulhar em subtextos e me conectar emocionalmente com tramas que, mesmo fantásticas, revelam muito sobre o que é ser humano. E Wicked jamais escaparia disso. Pelo contrário — ele se destaca justamente por tornar o simbólico íntimo, e o íntimo político.
Pra mim, Wicked é uma obra extremamente pessoal. Existe uma delicadeza nas relações entre os personagens que transborda para quem assiste. E não falo só da química do elenco ou do cuidado técnico envolvido na superprodução, mas da maneira como a história nos convida a sentir — a rever papéis sociais, rótulos, estruturas de poder e os afetos que resistem a tudo isso. É um musical fabulosamente crítico, que examina as nuances das relações humanas tanto no plano individual quanto estrutural. Wicked fala sobre pertencimento, repressão, apagamento — e também sobre como o medo do que é diferente é usado como ferramenta de controle.
É por isso que uma leitura com viés neurodivergente de Wicked me parece não só possível, mas quase inevitável — e urgente.
A pergunta que abre a obra — "O que é o mal?" — já nos prepara para uma reflexão que, pra mim, se conecta profundamente com minha vivência como autista. O subtexto neurodivergente está ali, nítido, pulsando em cada cena, mesmo que nunca seja nomeado diretamente. E, honestamente, mesmo que não tenha sido intencional, Wicked simboliza o que é ser uma pessoa neurodivergente num mundo que exige normatividade a qualquer custo.
Elphaba me empodera. Me vejo nela. Me identifico com seu isolamento, com sua intensidade, com a forma como ela precisa existir de forma “não-palátavel” num mundo que exige delicadeza performática. Sinto que Wicked fala diretamente sobre isso: sobre como a experiência de ser diferente é automaticamente lida como ameaça. Sobre como, às vezes, só o fato de existir fora do padrão já é considerado um ato de afronta. Como tentam nos suavizar, nos moldar, nos calar. Ou apagar.
Mas Wicked também fala de afeto. O vínculo entre Elphaba e Glinda é profundamente tocante. É um amor que nasce da escuta, da presença, da convivência com o que é diferente. Uma amizade que desafia as estruturas que tentam opor uma à outra. Isso nos leva a uma pergunta essencial:
Elphaba era mesmo má? Ou apenas foi lida assim por ser livre, intensa e... verde?
Elphaba não é má. Nenhum personagem é. Nenhum deles é totalmente bom ou ruim. São complexos, contraditórios, falhos — e é exatamente por isso que parecem tão reais. Essa história nos convida a revisar as etiquetas que colamos nos outros e, principalmente, as que colamos em nós mesmos. É uma narrativa sobre empatia. Sobre enxergar além das aparências. Sobre reimaginar o outro.
E honestamente? O mundo precisa urgentemente disso agora.
Mas se a história da Elphaba ressoa com tantas pessoas neurodivergentes, assim como eu — com sua pele verde que grita diferença, que parece carregar um cheiro de bodysplash vencido da WePink e ainda é chamada de “maligna” em rede nacional, como num certo episódio da Ju Isen na RedeTV! — então a gente precisa falar também da outra face dessa moeda cor-de-rosa (e levemente opressora): Galinda.
Popular, polida, performática… e autista?
Sim. Aquela Galinda. A garota que dança de salto alto num parapeito de uma sacada sem qualquer noção do perigo. A que encanta até os castiçais do cenário quando se pendura neles. A que sabe sorrir antes do clique da câmera, e sempre tem a fala perfeita na ponta da língua. Pra mim? Ela é autista. E é nela em que eu me enxergo mais. E antes que venham com pedras na mão, eu posso explicar.
Porque, por trás daquele brilho cor-de-rosa cintilante, daquela imagem de filha perfeita, de aluna nota dez e sorriso pronto, existe uma menina que não se encaixa. Com alto mascaramento. Que tropeça no protocolo social como quem tenta decifrar hieróglifos no escuro. Glinda vive num mundo próprio — uma bolha cor-de-rosa pastel onde nada faz muito sentido, e sorrir é uma forma de sobreviver
Galinda é esquisita — e digo isso com o maior carinho. Afinal, também sou. Ela é, sem dúvida, a garota mais estranha do colégio. Mas é aquela estranheza glamourizada, cuidadosamente empacotada em gloss, babyliss e com sua mais nova criação de cristais Swarovski.
Ela veste um uniforme rosa enquanto todo mundo insiste no azul desbotado da conformidade. Um gesto que parece fútil, mas que é, na real, radicalmente performático. Uma afronta que sussurra alto: “Eu não sou igual a vocês. Inclusive, não sou para o bico de vocês. Bicks ou Bocks.”
Porque vamos falar a real: todo colégio tem um Bock — aquele menino meio obcecado pela menina estranha mais bonita da sala. E Galinda, com sua aura cor-de-rosa, era a excentricidade mais desejada da instituição. Não porque fosse acessível. Mas porque era um enigma com blush. E todo Bock acha que pode decifrar uma Glinda se for bonzinho o suficiente.
Mas Glinda não é ingênua — embora pareça. Ela sabe exatamente o que quer, onde pisar, qual ângulo favorece, e onde ela pertence.
Só que aí mora o paradoxo: Galinda não pertence. Ela só parece pertencer. Sua aparência grita pertencimento, mas o corpo dela dança num ritmo que ninguém mais ouve. É como se ela decorasse a coreografia social, mas sempre perdesse um tempo no refrão. E quando alguém percebe o erro de tempo? Ela sorri. Brilha. Muda de assunto. Toss, toss, leg.
Mas nem todo pertencimento é verdadeiro. E, muitas vezes, o que chamam de aceitação é só uma versão envernizada de vigilância. Glinda sabe disso. Por isso, escolhe estrategicamente onde se sentar, como se vestir, e até quem amar. Ou melhor: quem fingir amar. É aí que entra Fiyero.
Porque há também outro tipo de performance acontecendo ali — a do desejo esperado. A da feminilidade regulamentada. A da heterossexualidade compulsória, muito comum em pessoas neurodivergentes, que não permite hesitação, confusão ou silêncio. Que exige da mulher bonita que ela também seja desejável, disponível, envolvida com um homem. Um homem que a “valide” diante dos olhos alheios.
E não é à toa.
Estudos indicam que pessoas autistas têm maior propensão a se perceberem fora da norma cis-heterossexual desde cedo. Um estudo conduzido pelo Centro Médico Nacional Infantil de Washington em 2014, por exemplo, mostrou que a variação em identidade de gênero era 7,59 vezes mais comum entre pessoas com autismo do que na população neurotípica. Não por influência externa, mas por características intrínsecas ao funcionamento neurodivergente, como a menor adesão a normas sociais impostas e uma forma mais sensorial e livre de experimentar o afeto.
Mas ao mesmo tempo em que essa percepção surge cedo, a pressão para se conformar é imensa. A maioria de nós, por sobrevivência, entra primeiro pelo caminho mais aceito — o da heterossexualidade compulsória. Fazemos isso não porque sentimos, mas porque “é o que se faz”. Porque é seguro. Porque é o script. Porque é o que se espera de alguém com aparência “feminina o suficiente”. Galinda sabe disso. E é por isso que ela tenta tanto caber.
Ela tenta seduzir Fiyero com frases copiadas de um tutorial da Capricho de 2008: “Mostre interesse, mas finja que não se importa.” Só que ela sempre se importa. E tudo soa levemente... constrangedor.
Fiyero nem é um crush — é um passe livre. Um cartão dourado pro clube dos aceitos. Um totem social. Um príncipe. Ele é o álibi perfeito para não precisar encarar (nem explicar) tudo que pulsa fora da norma. Ela performa o romance como quem lê um roteiro numa língua estrangeira.
Galinda não quer Fiyero. No fundo, ela deseja algo que ainda não sabe nomear. Ou que aprendeu a silenciar antes mesmo de descobrir. Ela deseja o que ele representa: a garantia de que ela está no lugar certo, com o script certo, falando a língua certa. Mesmo quando tudo dentro dela berra: isso aqui não faz sentido.
Quando o rosto encanta, mas a mente desconserta:
Ela fala de um jeito esquisito, age de um jeito esquisito — e não é um charme calculado. É só o jeito dela. Mas Galinda tem um trunfo: ela é linda. Linda do tipo vendável. Linda do tipo que dá lucro. Linda do tipo que não assusta a vitrine, que agrada.
É aqui que entra o famigerado Pretty Privilege — ou privilégio da beleza. Aquele fenômeno silencioso em que, se você é bonita, o mundo te trata melhor. Te escuta mais. Te perdoa mais. Te oferece mais oportunidades mesmo quando você tropeça. Você nem precisa entender o script social — basta parecer. A beleza te traduz. Te suaviza. Te protege do julgamento.
Esse privilégio está em todo lugar: no trabalho, na convivência, na rua.
Mas o Pretty Privilege tem um preço. E é alto. Ele esvazia.
Transformam você num objeto bonito, não numa pessoa complexa. Suas conquistas são desvalorizadas. Seu intelecto é subestimado. Sua dor é ignorada. E, aos poucos, seu valor fica condicionado a permanecer dentro de uma bolha estética — desde que você siga sorrindo e nunca pergunte demais.
Afinal se questionar demais, é mais provável que as pessoas te desumanizem, te desconsiderem e tentem reivindicar algum tipo de posse distorcida de você.
Um homem bonito pode ser dono do mundo, uma mulher bonita pode ser possuída por ele.
Galinda vive nesse limbo: Ser bonita, dentro do espectro, é ser ainda mais confundida com a expectativa neurotípica de perfeição. O rosa dela brilha tanto que ofusca quem ela realmente é. E talvez… nem ela saiba mais. Porque quando tudo em você é interpretado como charme, até os colapsos viram cena.
É mascarar o tempo inteiro, e ainda assim ser desacreditada. Porque o que você mostra por fora não condiz com o que o mundo espera que seja o "retrato do autismo". Não há espaço para falhas cognitivas quando seu delineado está simétrico. Não há margem para crises sensoriais quando sua roupa é impecável. Ser bonita e autista é um paradoxo: um corpo que agrada e uma mente que ninguém entende. É um paradoxo cruel.
É ser lida como exagerada quando expressiva, fria quando introspectiva. É ter a autenticidade invalidada por uma estética que suaviza tudo, como se um lip oil anulasse sofrimento. Como se a roupa bem pensada neutralizasse a sobrecarga sensorial. Como se ser bonita demais te excluísse do direito de falhar. Mas sejamos honestas? Galinda é uma péssima atriz no teatro do mascaramento. Desafinada, desastrada, desconfortável.
Mas é justamente aí que mora sua humanidade. Porque Galinda não mascara bem — ela mascara bonito. É diferente. O que, para quem está no espectro, é um dilema constante: parecer funcional demais para ser acolhida, e confusa demais para ser compreendida. Ela tropeça nos códigos sociais, e ainda assim ninguém percebe o esforço — só o brilho.
E aí, o Pretty Privilege, que parecia proteção, vira prisão. Uma performance constante, onde cada gesto é coreografado, cada silêncio interpretado, cada traço lido como vaidade — e não como esforço. E é nesse esforço, exaustivo e invisível, que muitas autistas se perdem. Galinda vive essa farsa com a graça de quem ensaiou demais. Mas a cada sorriso milimetricamente desenhado, o que ela quer mesmo é ser lida de verdade.
Só que o mundo só lê a capa.
E como tantas de nós, ela aprende que talvez só exista uma maneira de ser aceita: sendo a versão que o mundo tolera. Mesmo que, pra isso, ela precise esconder tudo que é, e cause uma sobrecarga sensorial que pode quase a destruir por completo. Galinda é o arquétipo da autista que o mundo não reconhece — e, por isso mesmo, não valida. E isso é mais comum do que parece.
Ela pode ser meio má. Meio insuportável. Meio Regina George com déficit de processamento. Em Oz, onde tudo brilha mais do que deveria e até o cinismo reluz, Galinda é uma nota aguda fora do acorde. Um glitter que risca no final da festa. Talvez por isso ela agarre com unhas amendoadas e cutículas bem-cuidadas o cetro da popularidade. Não é só status. É sobrevivência.
É a legenda que ela cola em si mesma pra que o mundo a leia direito.
E ainda insistem em não ler.
E então, temos Elphaba: o oposto do Pretty Privilege.
Desde o ventre, Elphaba já é lida como erro.
Sua existência nasce como ofensa: é vista como ultraje, aberração, maldição.
Não há espaço para ternura em sua chegada ao mundo — apenas choque, tentativa de contenção, de silenciamento. Ela não foi esperada, nem celebrada. Foi temida. Rejeitada antes mesmo de existir por completo.
Enquanto Galinda acende o ambiente com sua presença ensaiada, Elphaba escurece o palco — não por escolha, mas por leitura. Sua presença não é interpretada como exuberância, mas como ameaça. Ela entra numa sala e o julgamento já chegou antes dela: maligna.
Elphaba não possui a delicadeza social do rosa, nem o verniz cintilante da aprovação.
Ela não cabe em moldura.
Ela é verde.
Literalmente verde.
E nesse mundo, cor também é sentença.
Enquanto Galinda performa para ser compreendida, Elphaba é rejeitada mesmo quando tenta pertencer. Ela não tem o privilégio da estética suavizante. Tudo nela é lido como exagero: fala demais, sente demais, age demais. E é justamente esse “demais” que o mundo tenta silenciar.
Ela não possui o privilégio de mascarar bonito — porque tudo nela já foi rotulado como ruído.
Autenticidade, em Elphaba, não vira traço admirável.
Vira problema.
Vira desvio.
E se em Galinda o mundo diz:
"Mas você é tão linda... nem parece autista"Em Elphaba ele cospe:
"Só pode ser problema mesmo. Comeu capim na infância."(Mas entre nós? A mais provável de ter comido capim é a Glinda.)
É nesse cenário que surge "Popular" — o número musical, o gesto de amizade, o makeover performático. Mas o que parece ser um momento fofo de transformação… é, na verdade, um ato profundo de tentativa de domesticação.
Galinda olha para Elphaba e vê bondade. Vê algo precioso. Algo que quer por perto. Mas também vê desordem. Algo que precisa ser ajustado. Lapidado. Maquiado. Um presente envenenado.
Então ela propõe: "deixa eu te ajudar a ser aceita."
Galinda quer que Elphaba seja compreendida — mas sob seu molde.
“Se você for como eu, vão gostar de você também.
Ela propõe um gloss onde há silêncio. Um laço onde há cicatriz.
Ela quer embelezar Elphaba — não porque despreza o que ela é, mas porque não suporta que o mundo a odeie tanto assim.
“Se eu conseguir deixá-la bonita o suficiente… talvez o mundo ame ela como amo.
Mas Elphaba não nasceu para ser mascote da aprovação.
E esse desejo de Galinda é, no fundo, sobre ela mesma.
Sobre querer transformar a amiga numa versão menos incômoda de si
E então chega o rompimento… O corte. O salto. A recusa. O momento em que Elphaba escolhe o voo.
É grito. É ruptura. É o instante em que Elphaba entende que não será amada por quem é — e, ainda assim, decide continuar sendo. Ela poderia sorrir comedidamente. Pedir desculpas por ser intensa. Sussurrar, se abaixar, se adaptar. Ela poderia caber. Mas escolhe não caber.
“I know... but I don't want it.
No. I can't want it anymore.”
Escolhe o abismo.
Escolhe ser a bruxa má — porque é isso que o mundo faz com toda mulher que ousa dizer não.
“Something has changed within me
Something is not the same
I’m through with playing by the rules
Of someone else’s game…”
Esse momento me rasga de dentro pra fora. E não é como se eu não estivesse debulhada em lágrimas desde a primeira nota — Mas aqui, o choro vem de outro lugar. Porque Elphaba não voa em êxtase. Ela voa com raiva.
Ela voa porque ficar seria o mesmo que sumir.
“So if you care to find me
Look to the western sky…”
Ela é uma garota neurodivergente que tentou se ajustar. Tentou ser menos. Tentou seguir o roteiro. Tentou se encaixar no script brilhante que sempre exigiu que ela sorrisse enquanto engolia o próprio grito.
Mas o mundo respondeu com repulsa. Com medo. Com riso.
Elphaba não é símbolo de poder.
É símbolo de ruptura.
De tudo aquilo que escapa, que transborda, que não cabe em narrativa bonitinha com final feliz.
E o voo dela não é libertação leve —
É liberdade com gosto de desamparo.
É ascensão atravessada por solidão, por dor, por consciência de que, ao escolher ser ela mesma, ela escolhe estar só.
“No one mourns the wicked.”
Elphaba é reduzida à manchete. Ao escárnio. Ao mito da vilania.
Ela voou — então deve ser punida.
Ela recusou o roteiro — então deve sumir da história.
Ninguém chora a bruxa má. Porque é mais fácil odiar do que tentar compreender. Mais fácil taxar como loucura o que é dor. Mais fácil
chamar de ego o que é autoproteção.
Enquanto isso, Glinda segue.
Glinda permanece no palco, mas agora sozinha.
Ela se curva, recebe aplausos, entrega o espetáculo. Mas o riso é falso, o brilho é protocolar, o gesto é vazio. A amiga se foi — e com ela, a única parte que a lia direito. Glinda agora reina… mas não dança mais.
A Dança antes da ruptura.
Mas houve um momento. Um instante pequeno, quase imperceptível, que antecede toda a ruptura.
A festa. A cena da dança.
Aquele momento em que Elphaba chega à festa com seu chapéu pontudo — símbolo clássico de feitiçaria, de ridículo, de marginalidade — e é imediatamente ridicularizada, é também um dos pontos mais delicados da narrativa.
Sim, Glinda gosta do chapéu que deu a Elphaba, mesmo que tenha sido, inicialmente, uma brincadeira cruel. Ela o ganhou de sua avó. Era um presente de família — que, ao ser repassado como gozação, carregava um rastro de desprezo mascarado para agradar.
Mas o gesto ganha outro peso quando Elphaba recebe o chapéu como um presente real. Ela o usa com orgulho. Ela o interpreta como sinal de afeto.
E Glinda, ao perceber o valor que aquilo assumiu, muda
Ela hesita. Ela sabe o que aquele chapéu significa agora.
O mundo gargalha.
Mas Glinda não ri. Ela escolhe pela primeira vez dizer não.
Ela estende a mão.
E dançam.
No contexto do musical, a dança de Elphaba — inicialmente desajeitada e fora de compasso — é vista com estranheza. Ela dança sozinha. Seus movimentos não seguem o padrão, não encantam à primeira vista. É sua forma de se expressar. De autorregulação emocional
Quando Glinda entra em cena e decide dançar ao lado dela, o significado muda. Tudo muda.
Elphaba e Glinda dançam como se ninguém estivesse olhando — ou talvez, como se o mundo inteiro estivesse olhando, e isso não importasse.
Riem. Brincam. Choram. Se acolhem.
Ali, não há rosa nem verde.
Há afeto. Tentativa. O que poderia ter sido.
Talvez esse seja o único momento em toda a peça em que elas se encontram por completo:
Uma Glinda despida de performance.
Uma Elphaba em suspensão, fora da rejeição.
Duas meninas neurodivergentes, diferentes no método, iguais no sentir.
A menina que sempre soube performar.
E a que nunca teve chance.
O público, que antes ria, agora observa.
Aquele momento vira algo que não se pode ignorar.
Glinda, a garota mais popular da Cidade das Esmeraldas, escolhe sair do centro das atenções para ampliar o palco de Elphaba.
E ali, dançando, ela muda a forma como os outros olham para a diferença.
Essa cena é sobre isso:
A capacidade de Elphaba de ser autêntica, mesmo que fora dos padrões.
E a influência que Glinda tem para tornar essa autenticidade não apenas aceitável — mas admirável
A dança antecipa o fim — o voo — o “Defying Gravity”.
Mas antes disso, existe ternura.
Existe infância. Existe esperança.

E talvez seja por isso que pink goes well with green.
Porque o rosa é a máscara e o verde é a alma. Porque Glinda é o verniz e Elphaba é o nervo exposto. Porque a libertação de uma passa pela aceitação da outra. Porque, no fundo, toda Glinda tem uma Elphaba sufocada dentro de si, e toda Elphaba já foi uma Glinda que cansou de agradar.
Eu sempre fui Glinda.
A filha perfeita. A aluna exemplar. Aquela que sabia a resposta antes da pergunta. A que decorava a tabuada — e os sentimentos alheios. A que sorri na foto da formatura. Que responde com precisão ao professor que subestima meninas como eu.
Minha primeira performance de Glinda foi aos quatro anos, no ballet.
Lá, aprendi a brilhar. A controlar. A ser adorável.
Foi lá também que Elphaba nasceu — quando corrigiram minha estereotipia. Quando disseram que minha diferença precisava ser escondida.
Então, Glinda virou meu modo de sobrevivência: um misto ensaiado de carisma, autoconsciência e estilo. Onde Boqs — ou Bicks — se interessavam pela minha excentricidade cor-de-rosa e encantadora, mas que no fim odiavam a autenticidade verde maligna.
Mas o estranho é que me sinto estrangeira no meu próprio camarim.
Passo uma imagem inacessível — e talvez eu seja mesmo. Não por escolha.
Mas porque não me encaixo com todo mundo.
E, na real, ainda me pergunto: Onde eu me encaixo? Com qual versão de mim?
Me disseram que eu era livre pra ser quem quisesse.
Esqueceram de avisar que essa liberdade vinha com roteiro e luz direcionada.
Me venderam a liberdade como um palco.
Mas nunca disseram que o palco também é uma jaula.
Glinda é a liberdade que o mundo aprova.
A liberdade de agradar, de saber como vestir, como sorrir.
Mas essa liberdade cansa. Vira prisão.
Às vezes, eu queria ser Elphaba.
Gritar. Desagradar. Ser livre — sem precisar ser adorável.
Mas até a liberdade de Elphaba é solitária.
E a solidão me assusta, eu sempre quis o oposto. A queridinha das professoras. A diferente, na medida. A popular gentil.
Me esforcei para que gostassem de mim — mesmo quando dizia que não me importava. E no caminho, já fui insensível, irônica, esnobe.
Não por maldade. Por sobrevivência.
Por sustentar uma bolha cor-de-rosa nas costas.
Uma Dior vintage emocional da qual talvez eu nem tenha saído ainda, mas estou no processo.
Me chamaram de perfeitinha.
De “a filha da puta mais bem-vestida e maquiada do recinto”.
E com certo fundamento. Nunca ousei mudar de dentro pra fora.
Porque, se fizesse isso, veriam a pele verde.
Antes da aura rosa.
Então, lapidei contatos. Refinei referências. Fiz da estética uma fortaleza.
Mas percebi que algumas pessoas não queriam minha presença —
queriam o que eu representava. A vitrine. O look. A performance.
Quando eu escolhia sentar com quem via além do reflexo, deixava de ser a Glinda boa. Virava a bruxa má do Oeste.
Sim, ouvi:
“Você é tão bonita. Por que anda com essas pessoas esquisitas?”
Mas os “esquisitos” eram minha tribo.
Os que dançavam no contratempo.
Os que me aceitavam quando a aura rosa desbotava.
E talvez, no caminho, eu tenha magoado pessoas.
Parte de mim quer pedir desculpas. Outra parte — honesta, mas não simpática — reconhece que talvez nem saberia como.
Porque atrás da Glinda encantadora existe também uma Glinda egoísta.
Mimada. Que empalidece diante de um “não”.
Que vive no centro do palco e morre de medo dos bastidores.
“Você é verde.” — diz Glinda.
“Eu sou.” — responde Elphaba.
Glinda (eu) se importa. Muito. Ela (eu) diz que não.
Mas se importa. Com o que pensam. Com o ângulo. Com o timing.
Ela nunca estranhou Elphaba por ser verde — porque se reconhece.
Porque ela mesma se sente verde por dentro. Só que, ao contrário de Elphaba, ela disfarça com gloss, sarcasmo e com muito blush iluminador.
Quando me dizem: “Nossa, mas você nem parece autista”,
a Glinda dentro de mim sorri. Aliviada.
“Valeu o esforço”, ela pensa.
Mas a Elphaba sussurra:
“A que custo?”
Meu maior colapso como Elphaba foi quando tentei tirar minha própria vida.
Porque ser Glinda até o fim me adoecia.
Glinda é prisioneira do aplauso. Elphaba, do exílio.
E eu? Vivia nesse meio-termo performático: a liberdade vigiada
Um dia o meu delineado escorreu.
E ninguém percebeu.
Só Elphaba chorou.
E foi aí que percebi que tanto mascaramento não adiantava de nada.
Eu ainda era verde. Sempre vou ser.
Por mais que a estética do rosa me agrade — e me dê conforto.
Eu sei que ainda vai doer sair da bolha.
Mas também sei que sou mais do que o aplauso.
Que eu posso amar. Posso falhar. Posso parar.
Afinal, nada é linear.
E não preciso escolher entre rosa ou verde.
Posso viver entre o encontro, a dualidade. O roxo.
Mas se você me perguntar: por que pink goes well with green?
Porque vai. Na moda. No musical. Em mim.
Rosa e verde contrastam. Vibram. Se desafiam.
Mas quando juntos, criam harmonia. Criam estilo.
Na narrativa, são Glinda e Elphaba.
Na vida, sou eu tentando conciliar performance e essência.
Autismo e etiqueta social. Moda e desregulação. Ritual e ruído.
Na estética, rosa é meu feitiço.
Verde é minha verdade.
E no fim, talvez Wicked nunca tenha sido sobre escolher uma só.
Mas sobre dançar com ambas
Indicação de obras literárias que me inspiraram a escrever:
O autismo em meninas e mulheres: Diferença e interseccinalidade - Sílvia Ester Orrú
Autismo sem máscara: Uma jornada de autodescoberta e aceitação - Devon Price
Eu adorei!! ✨
que texto incrível!! nunca vi uma análise de wicked tão perfeita e que faz tanto sentido assim
com certeza agr vou ver essa história com outros olhos